quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Detroit (2017)



Num período do cinema em que a denúncia da (des)igualdade racial, quer actual, quer histórica, está, finalmente, na ordem do dia, cumpre reflectir de que forma esse cinema que se pode apelidar de intervenção social se deixa contextualizar enquanto obra cinematográfica (objecto de arte) e enquanto forma eficaz de despertar mentes, chamando a atenção do espectador (interessado) para a problemática exposta em tela. É interessante ver de que forma Kathryn Bigelow, realizadora do exímio Hurt Locker que lhe valeu o primeiro Óscar de realização atribuído a uma mulher, iria pegar neste jogo de intenções, aliando a sua marca de autora de cinema de guerra aos motins que tiveram lugar em Detroit, em 1967, por motivos raciais, expondo a ainda actual problemática da violência policial exercida por brancos sobre negros. Num primeiro plano, o social, o filme de Bigelow cumpre a sua função, numa apresentação em 3 actos, começando por expor a realidade de Detroit à época e apresentar as personagens que acompanharemos durante o acto central do filme: 3 polícias brancos aterrorizando um grupo de negros que se encontravam num motel para descobrir um atirador furtivo. O filme constrói-se, peça por peça, para esse momento, uma longa e claustrofóbica cena de interrogatório e violência policial que dura mais de metade do filme e que tem tanto de corajosa como de penosa, revolvendo e remastigando os fantasmas da atitude persecutória que a comunidade afro-americana representada na tela sente em relação à força policial onde quase apenas militam brancos. Extraíndo a problemática racial desta cena que é o cerne do filme, Bigelow parece apostar numa linguagem de terror a roçar o torture porn home invasion ou exploitation, eficaz para espelhar no espectador o pretendido sentimento de revolta e impotência. John Boyega é o ponto de equilíbrio nessa longa cena, interpretando um segurança afro-americano que se encontrava no local e que pouco poder tem perante a polícia. É esta a personagem que acaba por metaforicamente representar a posição do espectador (o cidadão) perante aquilo que é visto no écrã e perante o qual nada pode fazer, assim como é na "vida real". Podemos indignar-nos, podemos tentar influenciar a resolução da problemática em pequenas doses, mas não temos o poder de acabar com ela enquanto cidadãos. Bigelow deixa bem claro que está a passar uma mensagem. Em Detroit, o filme, quem dita as regras é a polícia da cidade, sob o fechar de olhos da polícia militar. Na actualidade americana, quem pode ditar as regras, solucionando o problema, prefere não o fazer. Neste filme de forte cunho intervencionista, convém reflectir de que forma é que Detroit é um produto relevante, uma vez que os espectadores que o mesmo pretende alertar não coincidem com aqueles que o verão. Esses, os interessados, verão apenas o retrato confirmado de uma realidade que já reconhecem. Não deixa de ser estranha a parca distribuição do filme nas salas portuguesas, o pouco tempo que esteve em sala e, nas salas que o exibiram, a moldura de audiência foi manifestamente reduzida para o novo filme de uma realizadora deste calibre, sempre com uma realização clínica, tensa, directa (como é sua marca) e com um leque de actores bastante apetecível. Não deixa de ser irónico que seja precisamente o publico que o filme procura alertar o mesmo que o deixa cair no enfado do esquecimento. 

Porque é bom: Análise crua e directa das problemáticas de violência policial racial ocorridas em Detroit nos anos 60, que mantém paralelismo hoje em dia; tecnicamente infalível, Bigelow aplica a sua estética de cinema de guerra ao drama racial, piscando o olho à linguagem de um certo tipo de cinema de terror.

Porque é mau: As conclusões a extrair de Detroit são as mesmas que levarão o espectador a interessar-se por ele, tornando o seu propósito circular; a cena central do filme pode ser demasiado longa e penosa para determinado público

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